quarta-feira, 29 de julho de 2009

Os cemitérios reais

O falcão voou para o céu... e o rei, seu filho, está sentado no trono de Rá em seu lugar

Assim o chefe da Medjay (polícia) anunciou "ao povo dos túmulos" a morte do faraó e a ascensão de seu sucessor ao trono, em um papiro conservado em Turim. Esse anúncio era seguido de uma sequência de cerimônias funerárias, que culminavam no sepultamento da múmia em uma tumba, munida com tudo aquilo que era considerado necessário para o local de descanso do filho de Rá e para garantir magicamente sua regeneração.

Desde os tempos remotos, as tumbas da realeza eram distintas das de seus súditos, da mesma maneira que o destino espiritual dos reis era diferente. As mastabas de "fachada de palácio" do início do Período Dinástico, depois as pirâmides em degraus e por fim as verdadeiras pirâmides (e não só os famosos exemplares de Quéops, Quéfren e Miquerinos) parecem, em sua estrutura sólida e impenetrável, simbolizar os "tronos eternos" dos homens que personificaram o deus Hórus e que foram os governantes do mundo. Esse era um mundo também considerado seguro e imutável.

No entanto os eventos acabaram por demonstrar a fragilidade intrínseca, tanto da estrutura política, abalada pelas revoluções do Primeiro Período Intermediário, quanto da presumida invulnerabilidade das pirâmides, como foi amargamente notado em um famoso texto:

Assim, aquele que foi sepultado como um falcão foi arrancado de seu sarcófago. O segredo das pirâmides foi violado... Assim, aquele que estava impossibilitado de fazer um ataúde, agora tem uma tumba. Assim, os mestres dos lugares sagrados, foram lançados no deserto (de Lamentações de Ipu-ur).

Com o restabelecimento do poder centralizado no começo do Novo Império, os cemitérios reais foram transferidos para as imediações da capital do reino na ocasião, onde quer que ela estivesse. As tumbas dos governantes de Tebas da 11ª dinastia estavam localizadas na margem oeste do Nilo em Tebas, em el-Tarif e em Deir el-Bahri (como a tumba monumental de Mentuhotep I), enquanto eles retornavam ao norte com a 12ª dinastia.

Durante o Segundo Período Intermediário, marcado pela traumática experiência da invasão dos hicsos, Tebas foi o centro da construção das tumbas dos reis da 13ª dinastia e posteriormente dos da 17ª dinastia, que foram os responsáveis pelo contra ataque que culminou na expulsão dos invasores. Essas tumbas, assim como as da 11ª dinastia, também eram localizadas em áreas contíguas às zonas habitadas, em Dra Abu el Naga, nas encostas das colinas que fechavam o Vale do Nilo a oeste. A múmia de Seqenenre Tao II, cujos danos provocados à cabeça são a evidência de uma luta sangrenta que terminou com a vitória de seus sucessores Kamose e Amosis, veio de uma destas tumbas não identificadas.

Os governantes da 18ª dinastia, depois de se transformarem nos senhores incontestáveis do país escolheram um vale atrás de Deir el-Bahri como seu "trono da eternidade". O vale era isolado e invisível para as pessoas que habitavam as margens do rio e o complexo funerário tradicionalmente integrado, consistindo na tumba e no templo, foi assim dividido. O templo funerário, "a casa dos milhões de anos", permanecia perto do Nilo para assegurar a perpetuação do culto devido ao rei por toda a eternidade. O local de sepultamento era isolado, em uma área inacessível pelas montanhas que a rodeavam, aberta apenas em uma única passagem estreita, usada pelas procissões funerárias. Este local chamado Vale dos Reis, é conhecido em árabe como Biban el-Muluk (portas dos reis). Para os antigos egípcios, ele era o Ta-set-aat, "o grande palácio", ou mais simplesmente Ta-int, "o vale". Um cume piramidal, "a cúpula" dominava a paisagem do vale, sua forma simbólica pode ter sido um fator na seleção deste local. O vale principal se dividia:
  • Vale Oriental – que contém a maioria das tumbas, e
  • Vale Ocidental – de beleza extraordinária e selvagem, com seus precipícios íngremes de pedra; estão localizadas apenas as tumbas de Amenófis III e de Ay.
A tumba mais antiga é a de Tutmés I, que também era associada ao nome de Ineni, o arquiteto que a projetou e construiu. Os operários chegavam ao vale através de uma trilha que partia de uma aldeia, a atual Deir el-Medina que era isolada e inclusa entre paredes de pedra. Os habitantes eram as pessoas envolvidas na construção das tumbas: pedreiros, escribas, pintores, escultores, carpinteiros e ourives. O isolamento serviu para garantir o segredo do que se passava no Vale dos Reis e no Vale das Rainhas – localizado ao sul da aldeia, abrigava os corpos dos filhos, das esposas e dos parentes dos governantes. As tumbas dos reis eram escavadas profundamente nos precipícios e eram compostas de uma série de degraus, rampas e corredores, com ocasionais poços profundos interrompendo as passagens. A câmara funerária era maior que as outras salas e seu teto era geralmente apoiado por pilares esculpidos na pedra. A sucessão de salas variou com o decorrer do tempo. Na 18ª dinastia (com exceção da de Ay) planta em ângulo reto com mudança brusca na direção a partir da metade do caminho. As da 19ª dinastia organizadas em linha quase reta, com uma leve angulação, a partir da metade do caminho.


Vale dos Reis


O lugar era escolhido pela:
  1. seleção da qualidade da pedra e a
  2. a proximidade com as tumbas prévias
Os operários eram divididos em duas equipes, que trabalhavam juntas:
1. os pedreiros e os operários – escavam a tumba e removem quantidades enormes de fragmentos de pedra calcária;
2. os escultores e os pintores – cobriam as paredes e os tetos da salas e dos corredores com cenas e textos destinados a garantir ao faraó a vida após a morte.

Apesar das tumbas do vale serem escondidas e protegidas pelas equipes da Medjay (polícia), logo começaram a ser o centro das atenções dos ladrões. Já na 18ª dinastia há testemunhos precisos de violação das tumbas reais. A situação piorou até o ponto em que no início da 21ª dinastia não era mais possível defender o vale. Várias múmias reais ainda não foram encontradas. Pode muito bem haver outro esconderijo ou sepulcro comunal, como o descoberto em 1908 na Tumba de Horemheb, que ainda precisa ser interpretado corretamente. A atual renovação da atividade arqueológica no vale por parte das autoridades egípcias e as numerosas missões estrangeiras sugerem que o futuro nos pode trazer mais surpresas.

do Livro 'Tesouros do Egito' do Museu do Cairo – Editado por Francesco Tiradritti e Fotografias de Araldo De Lucca – texto de Anna Maria Donadoni Roveri

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Egito

Duas grandes forças: o rio Nilo e o deserto do Saara, configuraram uma das civilizações mais duradoras do mundo. Todos os anos o rio inundava suas margens e depositava uma camada de terra fértil em sua planície aluvial. Os egípcios chamavam a região de Kemet, "terra negra". Esse ciclo fazia prosperar as plantações, abarrotava os celeiros reais e sustentava uma teocracia – encabeçada por um rei de ascendência divina, ou faraó – cujos conceitos básicos se mantiveram inalterados por mais de 3 mil anos. O deserto, por sua vez, atuava como barreira natural, protegendo o Egito das invasões de exércitos e idéias que alteraram  profundamente outras sociedades antigas. O clima seco preservou artefatos como o Grande Papiro Harris, revelando detalhes de uma cultura que ainda hoje suscita admiração.

Comentários